ANTÓNIO MARQUES
EDUARDO GAGEIRO E SEBASTIÃO SALGADO
Os dois fotógrafos deixaram-nos este ano, mas as suas obras – que enaltecem a dignidade humana, o valor da memória e o poder da imagem como agente de mudança – perdurarão por muito tempo.
Sebastião Salgado faleceu em 23 de Maio, aos 81 anos, e Eduardo Gageiro a 4 de Junho, com 90 anos. Como legado, deixaram uma obra fotográfica que vai além da sensibilização estética, incorporando um profundo e multifacetado impacto social, em diversas dimensões: denúncia, sensibilização, transformação cultural, memória colectiva e até projectos concretos de intervenção social e ambiental.
Com um percurso mais internacional, Salgado usou a sua câmara para documentar a miséria, o êxodo, o trabalho árduo e a destruição ambiental em mais de 120 países, com uma abordagem humanista que coloca em foco a dignidade e o sofrimento dos marginalizados, tornando visíveis realidades muitas vezes ignoradas pelo grande público.
O impacto do seu trabalho inspirou debates sobre justiça social, direitos humanos e políticas públicas. Exemplo notório é o projecto «Instituto Terra», fundado na sua terra natal, Aimorés (Minas Gerais, Brasil), que recuperou milhares de hectares de Mata Atlântica, numa demonstração prática de que a fotografia pode mobilizar recursos, pessoas e acções em prol de causas sociais e ambientais.
As suas imagens icónicas são amplamente usadas como instrumentos de reflexão, formação crítica e mobilização, expandindo o seu efeito de transformação cultural, e provocaram uma reflexão sobre os limites entre estética e ética na fotografia da pobreza e da tragédia, que desafia a objectificação e procura dignificar o retratado, estimulando discussões importantes na área do fotojornalismo.
MEMÓRIA, HUMANISMO E CONSCIÊNCIA SOCIAL
Já Eduardo Gageiro – que gostava de ser recordado como “um rapaz de Sacavém que procurou sempre denunciar as injustiças” – é uma referência incontornável na construção da memória colectiva portuguesa, cujas imagens – sobretudo do 25 de Abril de 1974, da vida operária e do quotidiano – são documentos visuais que ajudam a sociedade a reflectir sobre a liberdade, a desigualdade social e as transformações políticas do País que documenta desde os seus 12 anos.
Gageiro elevou o fotojornalismo português, documentando o drama e a alegria do nosso povo com profunda sensibilidade, através de fotografias que contribuem para um olhar crítico sobre a sociedade, qual instrumento de denúncia da desigualdade, da profunda injustiça social e da pobreza de Portugal e do seu povo durante a ditadura fascista, qual protesto silencioso e de resistência democrática, pelo que também não escapou à censura em diversas ocasiões.
Também conhecido como o “fotógrafo do Povo e da Revolução”, Gageiro confessou-se “um homem de coragem por trás de uma máquina”, que se atreveu a ir além, revelando o Portugal a preto e branco de Salazar, tal como a tragédia das cheias de 1967.
Dos destaques maiores da sua obra, destaque para as coberturas do atentado nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, e da Revolução de Abril de 1974.
A sua influência ajudou a transformar a fotografia em Portugal de um mero acessório ilustrativo para um instrumento de narrativa histórica e intervenção política, assente numa cultura visual comprometida com os valores democráticos.
OS “INVISÍVEIS” DA SOCIEDADE
O legado cultural de ambos ultrapassa largamente o universo da fotografia, influenciando debates sociais, políticos, ambientais e culturais, ou Salgado e Gageiro não tivessem utilizado a fotografia como denúncia social e instrumento de sensibilização, sendo as suas imagens frequentemente usadas como mobilizadoras da consciência social e acção política.
São bons exemplos disso as obras “Trabalhadores” (1993), “Terra” (1997), “Serra Pelada” (1999), “Êxodos” (2000) e “Génesis” (2013), em que Salgado documentou transformações económicas e humanas do séc. XX em diversas partes do Mundo. Ao retratar camadas “invisíveis” da sociedade, conferiu dignidade a populações marginalizadas sem recorrer ao sensacionalismo, tendo o seu trabalho sido aclamado mundialmente como “património cultural da humanidade” pelo seu arquivo visual, que serve como espólio ético, estético e político do nosso tempo.
Por seu lado, o legado de Gageiro está intrinsecamente ligado à história contemporânea de Portugal, sobretudo pela cobertura ímpar da Revolução dos Cravos, com as suas fotografias a tornarem-se documentos fundamentais da nossa memória colectiva e símbolos visuais do processo democrático nacional.
A sua câmara captou a vida fabril, o trabalho e o quotidiano do povo português durante décadas, bem como as grandes figuras da cultura, do desporto e da política nacional, e que ficaram eternizados nos seus livros, como “Gente” (1971), “Revelações” (1995), “Fotos de Abril” (1999), “Olhares” (1999), “Silêncios” (2010) ou “Liberdade” (2013).
As suas fotografias ajudaram a documentar e a denunciar as realidades social e política do País, contribuindo para a construção de uma consciência crítica e uma cultura de liberdade em Portugal, sendo essenciais para se compreender o Portugal moderno.