SELECÇÃO DE ERMELINDA MORGADO

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NÃO ME PEÇAM RAZÕES...

Não me Peçam Razões...
Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.
Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.
Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de Primavera que há-de vir.

NO CORAÇÃO, TALVEZ
No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração.

POEMA À BOCA FECHADA
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e me amordaça.
Calado estou, calado estarei,

Pois que a língua que falo é doutra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,

Vasa de fundo em que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só todos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais, bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quanto me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.

BIOGRAFIA
José de Sousa Saramago nasceu na Azinhaga do Ribatejo, em 16 de Novembro de 1922, e faleceu na Ilha de Lanzarote (Espanha), a 18 de Junho de 2010.
Autor de mais de 40 títulos, publicou o seu primeiro livro, «Terra do Pecado», em 1947, tendo escrito depois «Clarabóia», concluído em 1953, mas só publicado em 2011, após a sua morte.
Em 1976, instalou-se no Lavre, para documentar o projecto sobre os camponeses sem terra. Daqui nasceria o seu romance «Levantado do Chão» (1980). Dos seus muitos títulos, destaco «Provavelmente Alegria» (poesia, 1970), «Manual de Pintura e Caligrafia» (1977), «Memorial do Convento» (1982), «O Ano da Morte de Ricardo Reis» (1984), «Os Poemas Possíveis» (poesia, 1966), «Jangada de Pedra» (1986), «O Evangelho Segundo Jesus Cristo» (1991) – que originou a sua ida para Lanzarote –, «Ensaio Sobre a Cegueira» (1995) e «As Intermitências da Morte» (2005).
José Saramago recebeu o Prémio Camões, em 1995, e o Prémio Nobel de Literatura, em 1998. Em 2007 foi criada a Fundação José Saramago, instalada na Casa dos Bicos (Lisboa) e que é presidida pela sua viúva, Pilar del Rio.
Falecido em 2010, as suas cinzas encontram-se distribuídas entre a Azinhaga natal, a oliveira que se encontra em frente à Fundação e a sua casa em Lanzarote.

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