Jorge Fael
É PRECISO ACABAR COM O “NEGÓCIO DA SEDE”
É necessário valorizar a função ecológica e social da água, que foi reconhecida pela ONU, em 2010, como um direito humano, e que faz parte do direito à vida. O acesso a este bem essencial não é, pois, uma questão de escolha. É também uma questão de democracia, de soberania, de segurança ambiental, de protecção da natureza e de desenvolvimento.
Nunca é demais repetir: a água é o suporte de todas as formas de vida – vegetal, animal e humana –, insubstituível, essencial a todos os processos naturais, estruturante da habitabilidade dos territórios, do ambiente e indispensável a quase todos os sectores produtivos.
Mas é justamente por a água se constituir como um bem indispensável à vida, factor de domínio, de vulnerabilidade das políticas de soberania e controlo público, potencial fonte de lucros gigantescos à custa das economias de milhões de consumidores e da sobrevivência de milhões de seres humanos que ela é fortemente disputada e cobiçada. Como afirma Eric Swyngedouw (2004:36) «o capitalismo é claro, sempre foi e continuará sendo um sistema que tenta derrubar todas as barreiras existentes e incorporar o que pode à sua lógica própria de busca de lucro»1.
É por isso que a ganância e o avanço dos especuladores sobre a água têm crescido exponencialmente. Mas com a onda de contestação às privatizações em todo o Mundo, as grandes transnacionais da água têm vindo a alterar a estratégia: estão a vender as empresas concessionárias de serviços de águas e reorientam-se para os grandes monopólios das origens de água, para a água da natureza e os terrenos envolventes.
Para o capital financeiro, o “negócio da sede” é uma oportunidade. Willem Buiter, consultor do Citigroup, sublinha que “a alteração climática terá um grande impacto na água disponível” e que “o período da água da nascente que flui naturalmente no duche terminou”. E acrescenta sem complexos: “É necessário que as pessoas, em cada gole de água que bebem, sintam na carteira que a água tem um custo. Não é porque água é vida que não signifique que não deva ter um preço. Encontramo-nos no início da revolução financeira da água.” 2
Valorizar o serviço público e os trabalhadores
Por cá, a seca que atinge com gravidade o nosso País exige a tomada de medidas urgentes que assegurem, nomeadamente, o consumo humano, o abeberamento dos animais e a produção agrícola. Porém, o que se verifica é o aproveitamento da situação para justificar a mercantilização da água e a subida dos preços, como ameaçaram o Ministro do Ambiente e, mais recentemente, a presidente da ERSAR, afirmando que têm de ser os consumidores a pagar (nas facturas da água) as obras de manutenção e qualificação da rede de abastecimento, procurando passar o ónus do problema para os municípios e para as famílias.
É também a primazia do lucro que explica o porquê de, estando o País numa situação de seca, os detentores das barragens electroprodutoras continuassem a esvaziar as barragens aproveitando a alta dos preços da energia.
Como temos afirmado, as crises que atingem a Humanidade e a sua “casa” não se resolvem insistindo num modelo de crescimento predador, extractivista e destrutivo, e na privatização dos bens públicos, como a água. Pelo contrário! O que precisamos é de organizar e orientar os processos produtivos para o interesse comum, para a sustentabilidade, para o respeito pela natureza; de recuperar e valorizar a função ecológica e social da água, impedindo a sua utilização como factor de acumulação e concentração de capital.
O que é preciso é assegurar uma gestão pública robusta e competente, agir na preservação e protecção de todos os valores da água, assegurar o direito à água e ao saneamento para todos, valorizar o serviço público e os trabalhadores, e reforçar o investimento para cuidar do futuro.
Autarquias retomam gestão pública da água
Fafe. Neste município, a água regressou ao controlo municipal no passado dia 11 de Setembro, após o fim do contrato celebrado com a Indáqua, em 1996, uma decisão que o STAL saúda. A Águas de Fafe, empresa municipal, é a nova entidade responsável pelos serviços.
Setúbal. A Câmara Municipal aprovou, no dia 24 de Novembro, a recuperar da gestão municipal da água e do saneamento, colocando um ponto final na concessão a privados, uma decisão aprovada em 1997 (pela gestão do PS/Mata Cáceres) e marcada por várias suspeitas, em que a EPAL foi mesmo proibida de concorrer pela então ministra do Ambiente Elisa Ferreira, num claro favorecimento dos interesses privados.
Paredes. Nesta autarquia prossegue o resgate da concessão da água e saneamento, na posse da empresa Be Water, sendo intenção da edilidade a criação de serviços municipalizados de água e saneamento, cuja entrada em funcionamento está prevista para este ano. Mas o Tribunal Contas recusou o visto aos contratos de empréstimo de 21 milhões de euros solicitados pela autarquia para o pagamento do resgate da concessão. A Câmara já recorreu. 3
Paços de Ferreira. Os comerciantes deste concelho “optam” por abrir as torneiras e desperdiçar centenas de litros de água para pagar menos na factura ao final do mês. Caso não atinjam o consumo mínimo mensal de 1000 litros (1m3), pagam a tarifa máxima. Este é o resultado da privatização efectuada em 2004.
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[1] SWYNGUEDOW, E. Privatizando o H2O – Transformando águas locais em dinheiro global. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. I, n. 6, p. 33-55, 2004;
[2] https://www.aguadetodos.com/2020/12/10/agua-a-vida-ou-a-bolsa%ef%bb%bf/
[3] https://www.tcontas.pt/pt-pt/ProdutosTC/acordaos/1sss/Documents/2021/ac031-2021-1sss.pdf
In Jornal do STAL n.º 122