Ermelinda Morgado
ODE À PAZ
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte.
A DEFESA DO POETA1
Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.
Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.
Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de perdão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.
1 «Compus este poema para me defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória, o que não fiz a pedido do meu advogado que sensatamente me advertiu de que essa minha insólita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a sentença.»
NATÁLIA CORREIA, «Poesia Completa - O Sol nas Noites e o Luar nos Dias» (Dom Quixote, 2007).
BIOGRAFIA
Nascida na Fajã de Baixo (Ilha de S. Miguel, Açores) em 13 de Setembro de 1923, Natália de Oliveira Correia tinha uma coragem combativa, que a moveu em vários momentos de intervenção política e pública — nas polémicas intervenções parlamentares, enquanto deputada (1980-1991) — e nas tertúlias artísticas, nomeadamente no bar Botequim, que fundou em 1971.
Tomou parte activa nos movimentos de oposição antifascista, tendo participado no Movimento de Unidade Democrática (1945), no apoio às candidaturas para a Presidência da República dos generais Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958), e na Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (1969).
Durante a ditadura foi condenada a três anos de prisão, com pena suspensa, pela publicação da «Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica» (1966), e processada pela responsabilidade editorial das «Novas Cartas Portuguesas», de Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta.
Em 1992, liderou a criação da Frente Nacional para a Defesa da Cultura, com, entre outros, José Saramago, Urbano Tavares Rodrigues e Manuel da Fonseca.
O seu primeiro romance, «Grandes Aventuras de um Pequeno Herói», data de 1946, ano em que começa a escrever poesia. Publicou numerosos livros, datando o último do ano da sua morte (1993), «O Sol nas Noites e o Luar nos Dias», que reuniu a sua poesia completa, além de inéditos.
Recebeu o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores em 1991, ano em que também lhe foi atribuída a Ordem da Liberdade; era já detentora da Ordem de Santiago.
Faleceu em Lisboa, em 16 de Março de 1993.